11 agosto, 2009

VANDALISMO EM BRUMADO


Era uma mulher forte, enérgica, cheia de iniciativa. E de criatividade. Tinha multidão de amigos e conhecidos. Muitas pessoas a procuravam, em busca de ajuda. Não foram poucos os que ela acudiu na aflição; gente pobre e desamparada, incluindo mendigos e prostitutas. Lembro-me de seu plantão na cadeia da cidade, para evitar que um prisioneiro fosse lá assassinado; graças a isso, as ameaças contra o indefeso não foram cumpridas. Recordo-me de suas vigílias ao pé de doentes miseráveis que assistiu na sua agonia; de moços e moças que a chamavam de mãe por que nasceram às suas mãos. Pois era também parteira da gente humilde. Mas ela tinha amizades em todas as camadas, dava-se igualmente com as pessoas de destaque. Seus correligionários e outros; lembro-me de um seu amigo e adversário político, para quem ela escreveu, com gosto, um belo discurso, a fim de propiciar-lhe boa estréia na cena pública. É que para ela, a amizade estava acima das divergências. Também por isso era querida. E tinha a casa sempre cheia. Mas também muitos lá iam apenas para admirar suas telas, para ouvir sua conversa franca e colorida. Ou pedir-lhe poemas. Lembro-me de uma oportunidade dessas: uma professora primária, sua amiga, queria ter uma poesia nova para a recitação de seus alunos, em uma festa qualquer, não me lembro qual. Dona Ester estava ocupada pintando uma tela, muito concentradamente, mas não deixou de atender à moça; pediu-lhe que pegasse papel e caneta e ditou-lhe um soneto. Feito na hora, com métrica e rima perfeitas, sem que ela deixasse o pincel. Era difícil acreditar que não tinha sequer o curso primário, que mal fez as primeiras letras. Lia muito. Era uma oradora perita, que com facilidade convencia e comovia. Tinha uma prosa elegante, como comprovam os textos que deixou. Seu único livro de poemas (publicado postumamente) impressionou mestres de literatura do naipe de Francisco e Clara Alvim. Que também admiravam seus quadros. Judite Cortesão, cientista e pensadora portuguesa, uma das pessoas mais cultas que conheci, tendo visto apenas algumas de suas telas disse que estava diante do trabalho de uma artista de valor, com um estilo marcante. Mas não são esses admiradores que eu quero destacar. Destaco o povo de Brumado, que amava a arte de Ester Trindade Serra e nela se reconhecia. Foi certamente por isso que a Prefeitura da Cidade lhe encomendou um mural e, tempos depois, promoveu-lhe a restauração; em ambas as oportunidades era chefiada por homens dignos e inteligentes. Agora temos a surpresa de saber que outro prefeito, destoando dos seus honrados antecessores, ordenou que o mural fosse desfeito, oculto sob uma camada de tinta. Difícil entender esse ato de vandalismo. Em primeiro lugar, o mural pertencia à comunidade brumadense, achava-se na sede da prefeitura, não na casa do vândalo; não era um bem dele, era patrimônio público. Que ninguém pode suprimir por seu simples alvedrio. O titular de uma Prefeitura deve, no mínimo, saber distinguir o público do privado. Se não gosta de arte, que guarde para si o desgosto; se não é capaz de reconhecê-la, não se ponha a destruir o que não entende, nem queira impor sua obtusa apreciação a seus munícipes. Por boçal que seja, deve, pelo menos, respeitar a memória de sua cidade. Pois é disso que se trata. Era de sua obrigação preservar uma obra valorizada por seu povo; mostrou, porém, que não o respeita. Lamento seu ato arbitrário, truculento e estúpido não só pelo teor de agressão ao trabalho de uma artista querida, minha mãe, mas também pelo insulto assim feito a uma cidade que eu amo. Tenho conhecimento de que em Brumado muitos estão a protestar contra esse desmando. Conforta-me a certeza de que nem com toda a tinta da ignorância, da leviandade, da grosseria, pode um vândalo mesquinho apagar da memória de Brumado a lembrança luminosa de Ester Trindade Serra.
Ordep Serra

27 janeiro, 2009

Não contando alguns exercícios de colegial, de que meu irmão e alguns colegas eram os únicos leitores, meu primeiro conto foi escrito muito tempo atrás, pouco antes de meu casamento. (Tenho  mais de trinta anos de casado...) Esse conto ainda dormiu na gaveta por uma dezena de anos, mais ou menos, até que resolvi inscrevê-lo em um concurso nacional promovido pelo Desenbanco e pela Empresa Gráfica da Bahia. Dei-lhe o nome de Ajuda. E ele acabou premiado.  Depois disso, passados mais alguns anos, voltei a escrever ficcção. Já escrevi cerca de quarenta histórias e tenho outras esboçadas. Elas guardam relação umas com as outras e em grande medida isso se deve ao fato de que todas têm a ver com o mesmo sentimento do mundo: um sentimento que me parece impregnar a paisagem do Recôncavo e da Bahia de Todos os Santos . Cachoeira, minha cidade natal, é protagonista mais ou menos oculta de todas essas histórias. Não completei o conjunto que pretendo formar assim. Mas no ano passado separei dez dessas histórias que me pareciam dignas de destacar com um arranjo especial. Foi quando tive notícia do concurso literário da Academia de Letras da Bahia e da Braskem. Mas o edital prescrevia o limite de sete contos. No meu arranjo, o primeiro seria justamente o Ajuda. Este, porém, já fora premiado e editado, não podia ser aproveitado para o concurso. Além dele suprimi logo um outro, e em seguida mais um. Fiquei com o problema de recompor o arranjo dentro desses limites, dar-lhe uma unidade nova. Não foi um problema fácil de resolver, mesmo por que no conjunto novo, a que dei o nome de Sete Portas, o primeiro (o que passou a ser o primeiro) vinha a ser, a princípio, uma continuação do conto Ajuda.  Trabalhei para torná-lo mais independente... É claro que a recomposição me obrigou a fazer algumas intervenções nas seis outras "portas" do pequeno edifício literário. Mas creio que tive sucesso, pois o Sete Portas foi premiado.  Isso me alegrou muito. Na verdade, nunca tive tempo de dedicar-me pra valer à criação literária. Tenho onze livros publicados; na maioria, ensaios. Apenas um é uma obra literária de pura invenção: um livro de cordel com três poemas deste gênero popular. Também traduzo poesia -  o que exige, é claro, alguma perícia literária e criatividade (para acompanhar a do original). Publiquei uma tradução da tragédia Rei Édipo de Sófocles, infelizmente mal editada (pretendo voltar a ela, mais tarde); também traduzi dois hinos homéricos; a tradução do Hino a Hermes já foi dada a público e a do Hino a Deméter breve o será. Preparo a tradução dos Hinos Órficos e dos Hinos de Calímaco. Também projeto traduzir a Argonáutica de Apolônio de Rodes e o Édipo em Colono de Sófocles. Já traduzi um trecho da Eneida de Virgílio e outros poemas latinos (como exercício). Mas minhas atividades de antropólogo e professor me tomam muito tempo. Depois de me aposentar é que me dedicarei mesmo à criação literária. Por enquanto, escrevo contos e poemas nas horas vagas. De poemas, tenho dois livros prontos na gaveta (digo, no disco rígido do computador). Também tenho aí um romance quase pronto. Ficção e poesia me alegram muito. Na verdade, é o que mais gosto de fazer.  

26 janeiro, 2009

Há muito, muito tempo, nada escrevo neste blog. Efeito de uma grande carga de trabalho, de muitas coisas diferentes para fazer ao mesmo tempo. Assumi o posto de Pró-Reitor de Extensão da UFBA durante dois anos e continuei dando aulas, fazendo pesquisas, orientando alunos, escrevendo artigos e livros. A experiência na PROEXT foi boa, aprendi bastante.  Implementei alguns bons projetos (como o UFBA ECOLÓGICA e o Ciclo de Seminários Lyon-Salvador, por exemplo); resolvi alguns problemas crônicos da extensão em minha universidade e multipliquei o número de ações extensionistas. Mas outros projetos que concebi e considero muito importantes não consegui pôr em prática. Pesaram, neste caso, a tremenda burocracia da Universidade e a falta de recursos. Desta frustração, porém, tirei uma inspiração muito boa. Há coisa de duas semanas, quase, recebi aqui a visita de um amigo, o filósofo norte-americano Floyd Merrel, que vem todo ano a Salvador. Conquistei o apoio deste amigo para um projeto novo a que pretendo dedicar-me adiante e que resulta de uma reflexão sobre as dificuldades enfrentadas, da convicção de que elas não podem tornar-se um bloqueio permanente. Antes de falar disso, um parênteses: uma recente entrevista do nosso Reitor Naomar Almeida no Jornal A Tarde dá bem a idéia dos óbices em questão. Como Naomar mostrou, na verdade a autonomia universitária é ainda um sonho e a esta falta de autonomia concreta soma-se o imenso peso dos entraves burocráticos que tolhem a instituição, tanto nas suas relações com o MEC e outras instâncias de Governo quanto no interior da própria máquina universitária. Mas passo a falar de modo breve do projeto que apresentei a Floyd em nossa conversa. Trata-se simplesmente de fazer um grande banco de projetos onde possam ser depositadas idéias que (ainda) não puderam ser concretizadas, nas circunstâncias em que foram concebidas, mas podem ser viáveis e úteis em outros contextos ou em outros momentos. A minha tentativa de efetivar o reconhecimento (com titulação) pela universidade de Mestres de Artes e Ofícios Populares ainda não vingou; o projeto foi encaminhado ao Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da UFBA mas aguarda apreciação e sabe Deus quando isso acontecerá, ou se acontecerá. Porém já tive notícia de uma outra universidade interessada no assunto. Não hesitarei em encaminhar-lhe este projeto. Tenho alguns outros que podem ser implementados em diferentes lugares e conheço muitas pessoas com idéias interessantes que ainda não conseguiram pôr em prática. O Banco que imagino  terá colaboradores de diferentes partes do mundo (já aliciei dois nos EEUA e tenho certeza do apoio de muita gente boa na Europa, por exemplo.  Quem estiver interessado nessa iniciativa, por favor, entre em contacto comigo. Mais tarde explicarei melhor neste espaço como a estou pensando. Aviso, poré, que só poderei dedicar-me a ela mais efetivamente daqui a dois anos, pois até lá tenho projetos mais urgentes... 

24 julho, 2006

Sinistra esta guerra bushiana que Israel move contra a Hizbollah de forma criminosa e estúpida, sacrificando vidas inocentes numa agressão inominável ao Líbano. Não há justificativa para tão covarde terrorismo de Estado; a alegação de "combate ao terrorismo" , neste caso, é mais que cínica. Espantosa também a covardia dos Chefes de Estado da Comunidade Européia que calam o protesto pelo temor de ser considerados "anti-semitas". Semita só pode ter um significado aceitável histórica e antropologicamente: falante de uma língua do tronco semítico. Como é o caso dos árabes, dos palestinos, dos libaneses, tanto quanto dos judeus. Quantos semitas o Estado nazista de Israel está sacrificando? Esse Estado de Israel nada tem a ver com a verdadeira, forte e bela tradição judaica. Seus líderes sujam o nome do patriarca e cospem na boca dos profetas com seu despudor homicida, alheio a quaisquer valores morais.

Agora passo a outro assunto que me está preocupando muito: uma ameaça sinistra contra um dos mais belos lugares do mundo, a bacia do Rio Xingu. Estão querendo lá construir barragens criminosas que podem destruir magnífico nicho ecológico e um santuário de culturas indígenas, colocando em risco a vida de muitos povos. Por favor, protestem, lutem todos contra este crime premeditado e anunciado cinicamente. Abaixo reproduzo mensagem que enviei a respeito ao Presidente da República.

Exmo. Sr. Presidente da República

Luis Ignácio Lula da Silva

Em nome dos interesses maiores da humanidade, vimos fazer a Vossa Excelência um apelo no sentido de evitar uma verdadeira tragédia: o brutal comprometimento de um nicho ecológico dos mais ricos, a redução calamitosa da biodiversidade de nosso país e a violenta agressão a uma área cultural exuberante, com dano a diferentes povos que se distinguem entre os primeiros habitantes do Brasil. A Barragem de Paranatinga II, que tem suas obras em execução ao arrepio da lei, afrontando decisão judicial, representa um atentado contra um sistema hídrico vulnerável, com as mais deletérias conseqüências para o ecossistema. Além disso, atenta contra os direitos humanos e a diversidade cultural, pois coloca em risco a qualidade de vida e mesmo a sobrevivência dos povos da bacia do Xingu, que — se a obra nefasta não for detida — serão dramaticamente afetados pela ilegítima construção da PCH Paranatinga II no Rio Culuene, por sinal a apenas dois quilômetros de uma Reserva Ecológica: o modo de vida tradicional dos Waurá, Kuikuru, Yawalapiti, Kamayurá, Nafuquá, Aweti, Kalapalo, Mehinako, Matipu, Trumai, Ikpeng, Kayabi, Juruna, Beiço de Pau, Suyá, Kayapó, e Xavante corre assim um risco de extinção.


Não queira Vossa Excelência que em seu governo um crime dessas proporções seja perpetrado.


Confiando em seus sentimentos de humanidade e dignidade, em seu respeito à vida e aos direitos dos povos, esperamos resposta a nosso apelo: confiamos em que Vossa Excelência fará suspender a construção da nefanda represa.


Respeitosamente,


Prof. Dr. Ordep Serra

Coordenador do Grupo Hermes de Cultura e Promoção Social










03 junho, 2006

Há muito tempo que não volto a meu blog. No intervalo, estive hospitalizado por um curto período: fui submetido a uma cirugia para acabar com uma hérnia de hiato e o conseqüente refluxo. A cirurgia foi um sucesso; mas o pós-operatório foi um pouco sofrido. Imaginem um homem que sempre foi guloso, voraz, com um apetite de lobo, sentindo, de uma hora para outra, dificuldade de engolir até mesmo água. Tive de ser submetido a um novo procedimento, coisa comum nesse tipo de cirurgia: tataram-me com um balão esofágico. Isto significa que depois de sedado me introduziram um balão goela a dentro e o dilataram de modo a aumentar o meu campo de ingestão. Deu certo, felizmente. Mas o plano de saúde (como são canalhas os planos de saúde no Brasil!) não queria pagar pelo novo procedimento; tergiversou um bocado, retendo-me no hospital mais dias que o necessário, à espera de uma autorização que nunca veio. Finalmente, por pressão do médico, o hospital resolveu efetuar o procedimento e cobrá-lo depois do plano. Que agora vou processar. Não só por causa do atraso que me prejudicou no trabalho (tenho aulas a repor, orientandos a quem devo mais horas de conversa, projetos por concluir, um acúmulo de afazeres no Departamento etc.) mas principalmente por causa da dose extra de sofrimento. Apesar do excelente médico e do ótimo atendimento no Hospital Português, é sempre sofrida uma passagem dessas. Ficar atado ao soro é irritante; a sensação de perda de tempo, quase inevitável; e essa novidade de não saber engolir cria angústia. Eu tinha, porém, muito conforto: a companhia de minha mulher (que detesta hospital, coitada!) , de minha filha, de meu genro (que eram constantes), mais as visitas precisosas de meus irmãos e de amigos muito queridos, como Débora e Émerson, Xavier, Anselmo, Juju. Sou muito grato a todos. Mas quero falar aqui em especial de uma companhia magicamente confortadora: a de minha filha Helena. Ela, assim que chegava ao hospital se deitava numa cama (em geral na minha: somos bons transgressores) e dormia placidamente. Isso me fazia um bem enorme. Me passava uma sensação de profunda serenidade, dava-me um banho de bom humor. Helena tem um sono bonito, de que atesto o efeito terapêutico. Talvez seja um dom dos deuses, de seus quatorze orixás. Há pessoas de presença forte, que nem precisam de gestos ou palavras para marcar o mundo, preeencher-lhe os vazios. Às vezes, só de passagem, elas tomam conta de um lugar de um jeito que fica sendo definitivo. Seu silêncio tem música. A força de presença não depende de agitação. A gente às vezes vê isso no teatro, no cinema: um ator imóvel ou quase imóvel, toma a cena toda, mesmo que nela haja outros irrequietos. Pode haver nisso técnica dramática, mas penso que o principal é espontâneo, é uma qualidade da pessoa. A presença forte se mantém até mesmo depois que a criatura sai do lugar: seu brilho demora ainda um pedaço. E como Helena provou, atravessa a parede do sono. Quem está perto se sente fortalecido.

11 fevereiro, 2006

Não sei bem porque estou agora contando esta história. Em todo o caso, planejava contá-la algum dia, e a lembrança dela me voltou hoje de um modo muito vigoroso. Tenho de fazer um pequeno prólogo para torná-la compreensível.

Estudei no Colégio Antônio Vieira, dos padres da Companhia de Jesus, aqui em Salvador. Naquele tempo, quase todos os jesuítas que conheci nesta Casa famosa eram italianos; a eles devo o encantamento com a língua de Dante e com o latim. No Vieira fiz (depois do Ginásio) o que então se chamava de Curso Colegial, opção de quem se interessava por Humanidades; na prática, quase todo o mundo que o cursava fazia vestibular para Direito. Segui esta regra. Os candidatos à Faculdade de Direito deviam, no vestibular, fazer prova de latim. No programa, a Catilinária, de Cícero, e a Eneida, de Virgílio. Por Cícero não me interessei muito; mas a Eneida me encantou. Fiz um grande esforço para a ler inteira no original, embora só dois Cantos dela constassem da prova. Assim Virgílio me enfeitiçou e fez nascer em mim um desejo muito forte: ler Homero, também no original.

Passei no vestibular, mas abandonei logo o Curso de Direito, com menos de um mês de freqüência às aulas. Fiz novo vestibular para Filosofia, e depois de duas ou três aulas larguei o curso. Estava incerto quanto a minha vocação. Entre minhas poucas certezas, estava, porém, a vontade de tornar-me helenista. Um amigo ilustre, o Professor Agostinho da Silva, cujo centenário está sendo agora celebrado no Brasil e em Portugal, falou-me que na recém criada Universidade de Brasília, para onde ele estava indo a convite de Darci Ribeiro, pontificava um grande helenista, amigo seu, que acabava de criar o Centro de Estudos Clássicos. O nome de Eudoro de Sousa já era muito festejado em nosso país; este professor português fizera nome na Universidade Federal de Santa Catarina e na USP.

Decidi ir para Brasília a fim de estudar com ele.

Um pouco como os alunos das velhas Universidades européias, nas remotas eras em que elas surgiram, não fui atrás propriamente do curso, mas de um mestre... E de fato encontrei um, de primeira grandeza. Fiz o vestibular para o Instituto de Letras, e antes mesmo das provas "internei-me" no CEC, devorando os livros que o mestre Eudoro me dava a ler. Tratei logo, é claro, de estudar grego com o máximo afinco. Era minha prioridade máxima. Além das aulas de Língua Grega, a minha concentração maior era nas disciplinas ensinadas por Eudoro, que cobriam todo o campo da Filologia Clássica, entendido com a amplitude de sua formação germânica na Classisches Altertumswissenschaft.

Em pouco tempo, devorei o manual de Kalinka e o livro de verbos de Delotte, além de algumas veneráveis gramáticas de grego disponíveis no Centro. O mestre Eudoro fazia-me traduzir os textos dos exercícios e depois "revertê-los" ao grego, repetindo a operação até estar seguro de que podia escrever corretamente na velha língua o que nela tinha lido, de modo a "incorporá-la" assim. Depois das aulas matinais, eu passava a tarde no CEC estudando,; e após o jantar (quando jantava), voltava para lá, onde, com a permissão do Diretor e a boa vontade dos vigias, ficava estudando, muitas vezes até de madrugada. Era um regime de trabalho duro mesmo, esse que eu me impunha. Mas apesar das dificuldades foi um tempo muito feliz de minha vida.

No começo, enquanto não recebi a primeira bolsa, freqüentemente me faltava dinheiro até para pagar o módico preço das refeições no Restaurante Universitário. Professores conterrâneos e amigos que logo fiz me convidavam com freqüência para almoçar com eles; às vezes eu mesmo os convidava, desde que o almoço fosse em suas casas. Tive também a ajuda generosa dos vigias, com quem fiz logo amizade, por conta de meus hábitos noturnos... Eles de vez em quando abriam o restaurante altas horas da noite para que eu pudesse lá me abastecer com pães, frutas, doces, coisas que sempre sobravam. Algum dia falarei aqui das muitas coisas que aprendi com estes amigos generosos... Através deles, fiz amizade também com alguns operários que estavam empenhados na construção do imenso prédio do Instituto Central de Ciências da UNB.

Não demorou muito que eu me sentisse capaz de empreender a leitura da Ilíada. O grego homérico não é muito difícil. A sintaxe é simples, não oferece problemas; prevalece a parataxe na sua construção. A dificuldade está no imenso vocabulário, na variedade das formas dialetais encontráveis aí; mas com um bom Lexikon Homericum e muita disposição, este obstáculo pode ser logo vencido. A recorrência das fórmulas ajuda muito. O ritmo do hexâmetro oferece um poderoso apoio à memorização. E a beleza fascinante do texto estimula a gente. Além disso o mestre Eudoro de vez em quando me ajudava com ricas explicações, que podiam durar horas, a propósito de passagens, às vezes de dois ou três versos, que provocavam a reflexão sempre profunda desse doublet de filósofo e helenista. Assim, numa bela sexta-feira friorenta do mês de junho, terminei, emocionado minha primeira leitura da Ilíada.

Eu já era bolsista, tinha algum dinheiro no bolso. Decidi comemorar. Baianamente, com uma boa farra. Dirigi-me, depois do jantar, a um bar, na verdade um barraco na Asa Norte, situado estrategicamente num trecho que limitava com o campus; era o bar dos candangos que trabalhavam na construção do ICC, dos serventes, dos peões da UNB. Segui o estilo deles, "amparando", como diziam, a cerveja com goles de boa cachaça. Não demorou que eu ficasse completamente bêbado. Tanto que logo subi à mesa e comecei a recitar:

Mênin aeíde, theá, Peleiádeo Akhilleos...

O que aconteceu então ainda me espanta. O mais provável numa situação dessas, em que um rapaz bêbado sobe à mesa de um boteco e recita coisas ininteligíveis, talvez fosse uma intervenção do dono do estabelecimento para conter o bagunceiro, ou uma vaia dos circunstantes, ou algumas gargalhadas, uma grande gozação. Mas deu-se outra coisa. Os candangos fizeram um silêncio interessado e respeitoso; muitos se aproximaram e rodearam minha mesa, ouvindo atentamente. Eu estava completamente arrebatado pela emoção e pela embriaguez. Quando o angustiado sacerdote Crises iniciou sua soturna caminhada pela praia do mar multimurmurante, prestes a fazer a prece furiosa ao deus do arco de prata, eu não me contive, as lágrimas rolaram pelo meu rosto, e tive de parar. Rompeu então uma chuva de aplausos dos candangos. Um deles, cambaleante, me abraçou, também com lágrimas nos olhos e disse: "Eita baianinho danado! Que coisa mais bonita essa poesia que você falou!" Lembro-me de que recebi ainda vários outros cumprimentos da turma toda. Na hora, achei muito natural. Mas no dia seguinte, com a lucidez que sucedeu a uma espantosa ressaca, fiquei perplexo.

Quando contei ao mestre Eudoro o acontecido, ele primeiro riu muito de meu porre homérico; depois comentou que a cachaça não explicava tudo: "Esse teu público é mesmo gente de valor".

Sim, dou razão a ele. Os pobres candangos, na maioria semi-analfabetos, com quem celebrei a realização de um sonho encarecido, a seu modo me ensinaram uma preciosa, inesquecível lição de poesia.

05 fevereiro, 2006

Estou em fase de rearrumação do meu blog, graças a Helena, minha filha, que me guia neste espaço. Foi ela quem o rebatizou, lembrando-se de nosso amigo Pernambuco, e deu cara nova a minha página. Dos meus desenhos, ela escolheu um Exu e dois anjos para guardar este espaço. Aprendi com ela também a usar o porta-arquivos, para onde deslocarei ensaios e artigos maiores (não há muito enchi o blog com um grande estudo, que aí coloquei para facilitar o acesso dos meus alunos a um texto didático; agora já sei onde pôr essas coisas, não comprometerei mais a economia blogiana). Farei aqui comentários curtos, ou, quando nada, menos extensos. Começo por dois comentários a notícias de jornal. Primeiro, ao que li no jornal A TARDE de sexta-feira passada (3/2/06) em uma boa reportagem de Levi Vasconcelos (p.11) sobre boas novas do Judiciário na Bahia, relativas ao combate ao nepotismo, combate que tem encontrado resistência feroz entre muitos magistrados. À margem do tema central, o jornalista observa que apesar de uma resolução em contrário (a Resolução 08/2002) persiste entre os senhores juízes o hábito de dar a bem público nome de pessoa viva: o de colegas seus, geralmente. Deve-se notar que não se trata de uma exclusividade do Judiciário. Dar nome de pessoas vivas a logradouros públicos é proibido pela Lei .454 de 06 de outubro de 1977, como lembra o mesmo repórter. Mas esse hábito ridículo continua inabalável. É repugnante que legisladores, juízes, autoridades do Governo insistam em masturbar-se uns aos outros com essas homenagens espúrias, insultando o público com sua ridícula vaidade. Na Bahia mesmo, um único e notório cacique dá nome a centenas de ruas, avenidas, praças etc. em numerosas cidades do estado que considera um feudo seu. Se o Judiciário quiser mesmo purificar-se e purificar os costumes da classe dirigente, deve tomar uma providência. Sugiro que o Ministério Público exija imediatamente atestado de óbito de todos esses homenageados, concedendo que eles poderão manter a distinção se honrarem o atestado; se não o fizerem, que sejam considerados oficialmente mortos desde já.

A segunda notícia que quero comentar vem da Folha de São Paulo de sábado, 4 de fevereiro de 2006. Mário Hugo Monken revela que no Rio de Janeiro narcotraficantes impuseram nova lei; segundo decidiram esses barões do crime organizado, umbanda e candomblé estão proibidos nas favelas do Rio de Janeiro. O criminoso Fernando Gomes de Freitas, o Fernandinho, que se diz evangélico, determinou o fechamento de vários terreiros no Morro do Dendê (Ilha do Governador) nos últimos meses. O mesmo acontece nas favelas de Jacarezinho, Mangueira, Manguinhos e Vigário Geral. A medida é para contentar igrejas "evangélicas", dessas novíssimas de neopentecostais de missão que proliferam ultimamente e promovem uma sórdida campanha de difamação e perseguição das religiões afro-brasileiras, apoiadas na leniência das autoridades. O repórter assinala que a polícia já flagrou a participação de traficantes em cultos próximos a pontos de venda de drogas. Não é segredo para ninguém a ligação entre essas "igrejas" e o crime organizado. Elas na verdade participam da organização criminosa; são grandes lavanderias de dinheiro. Lembram-se do pastor que foi surpreendido pela Polícia Federal enchendo um jatinho com sacos de dinheiro? Acontece que esses "pastores" têm bancada no Congresso, têm votos e poder de compra de votos; por isso são paparicados por quem teria obrigação de coibir sua ação deletéria. Triste Brasil.